04 julho 2011

Exemplo sobre como um descuido estatístico pode levar o governo a estimar mal os parâmetros de programas governamentais!

A falsa miséria estatística
O Estado de S. Paulo/BR
Domingo, 03 de julho de 2011

José de Souza Martins

Análises meramente econômicas e numéricas ignoram a poderosa tendência do pobre de compartilhar e ajudar

Nas últimas semanas a opinião pública foi abastecida com indicadores opostos sobre a situação material dos brasileiros. Os dados do Censo de 2010, que balizam as ações do novo programa governamental Brasil sem Miséria, computam 16,267 milhões de miseráveis, 8,5% da população brasileira, uma Holanda inteira, gente cuja renda familiar mensal, quando muito, alcança R$ 70. No interior desse grupo há até os miseráveis dos miseráveis, aqueles cuja renda é de até R$ 39 por mês, pouco mais de R$ 1 por dia, basicamente os tostões que a gente chuta quando caem do bolso furado, aqueles tostões que nem vale a pena curvar-se para recolher. Como há, ainda, os supermiseráveis, os 4,8 milhões de pessoas que no Censo não aparecem com renda alguma.

Aí a coisa se complica. Quem vai acreditar, em sã consciência, que quase 5 milhões de pessoas possam sobreviver sem renda alguma? Posso acreditar que haja pessoas dependentes financeiramente de terceiros, especialmente idosos, doentes e menores, que, não obstante serem de uma família, moram em casa separada da dos provedores. Nesse caso, o dado mostra um defeito na concepção estatística de família e moradia, que não corresponde ao que são numa sociedade de tradições patriarcais, a família como instituição plurilocal baseada numa economia condominial. É preciso não confundir a estatística da miséria com a miséria da estatística.

A secretária para Superação da Extrema Pobreza esclareceu que outras formas de renda não são levadas em conta nesta fase de divulgação do Censo, caso da agricultura de subsistência. Essa forma de renda não é renda. Renda é o ganho que passa pela mediação da forma dinheiro. Portanto, os dados em que vai se basear o programa Brasil sem Miséria já apontam um defeito de compreensão da realidade brasileira que repercutirá na própria concepção das medidas que preconiza. Compreende-se, pois, que, nas representações gráficas dos dados estatísticos, o Norte e o Nordeste constituam um oceano de deplorável miséria. E que o Sul e o Sudeste constituam um oceano de escandalosa prosperidade.

Para compreender essas anomalias estatísticas é preciso levar em conta que a economia brasileira é historicamente uma economia dual. Nem todos dependem de rendimentos monetários para viver. São numerosos, ainda, na roça, aqueles para os quais os ganhos monetários, muito variáveis, aliás, não constituem propriamente o decisivo na sobrevivência da família. Nela a subsistência da família é assegurada prioritariamente pela produção direta dos meios de vida. Então, sim, pode-se entender que uma família até viva sem nenhuma renda monetária nessa economia peculiar que denomino de economia do excedente (e não de subsistência), em que parte da produção própria é consumida em casa e parte é comercializada. Seria ficção medir em dinheiro o que não circulou no mercado.

No lado oposto ao da miséria, a pesquisa da FGV sobre a nova classe média, ou o lado brilhante do pobre, divulgada nessa semana, inunda o cenário com um otimismo numérico luminoso. Se os dados do Censo aqui apontados falam de um Brasil que submerge, os dados sobre a nova classe média dizem que, dentre os países emergentes, o Brasil é o que mais emerge. O grau de felicidade futura do brasileiro indicado pelo Gallup é o maior do mundo. Quem estuda sociologicamente o tema da fé no Brasil tomaria o maior cuidado com essa informação superficial e subjetiva. É que, sendo o brasileiro um povo no geral místico, raramente verbaliza pessimismo que possa indicar falta de fé, na suposição de que inviabiliza aquilo que se espera e deseja.

A criação de quase 800 mil empregos líquidos de janeiro a abril, que a pesquisa menciona, certamente é o melhor fator de otimismo para a nova classe média estatística. Mas é pouco provável que essa parcela da população não tenha tomado consciência, no vivencial, de que desde 2010, no mesmo período, o número de empregos formais venha caindo. Ainda assim, é bom indício de que alguma coisa esteja dando certo na economia, o fato de que os rendimentos dos mais pobres venham crescendo mais do que o PIB nacional. A melhora comparativamente significativa dos seus rendimentos em relação à dos mais ricos, porém, apenas nos indica que, num país com alta proporção de miseráveis, quaisquer R$ 10 podem dobrar a renda de uma família, elevando o índice de sua ascensão estatística. Mas é muito provável que na população mais pobre a melhora tenha seu melhor êxito no fortalecimento do caráter condominial da economia das famílias pobres, que sendo no geral de origem rural, carregam consigo uma poderosa tradição de compartilhar e ajudar. Que as análises meramente econômicas e estatísticas desdenhem esse poderoso traço cultural do pobre, como desdenham a economia do excedente, antes mencionada, empobrece as interpretações porque subestimam um capital cultural decisivo no seu efeito multiplicador nas economias duais como a nossa.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS, SOCIÓLOGO E PROFESSOR EMÉRITO DA USP, É AUTOR DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO, 2011)

13 junho 2011

Essa é a grande fronteira da política...


Internet é arma política para 71% dos jovens

Pesquisa mostra que rede se firma como ferramenta de mobilização alternativa

DE SÃO PAULO


Descontentes com as instituições políticas tradicionais, os jovens brasileiros consolidaram a internet como instrumento alternativo para mobilização social, mostra pesquisa feita pelo Datafolha em parceira com a agência de publicidade Box.
Para 71% dos entrevistados, é possível fazer política usando a rede sem intermediários, como os partidos.
O dado, segundo especialistas ouvidos pela Folha, revela um esgotamento do modelo tradicional de mobilização e impõe um desafio aos que pretendem assumir a representação dos jovens.
A pesquisa compreendeu uma fase qualitativa, a que se seguiu um painel quantitativo. Neste, foram entrevistados 1.200 jovens com idade entre 18 e 24 anos, em cidades de quatro regiões do país.
"Esse jovem pensa a política de forma menos hierárquica e mostra uma descrença em relações às instituições formais, como partidos ou governo", diz Gabriel Milanez, pesquisador da Box.
O sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirma que "a juventude se comunica diretamente". "Ela salta instituições. É preciso uma liderança que faça a ponte entre a sociedade e a necessidade de organização institucional", disse à Folha.
Exemplos desse "salto" ficaram frequentes no noticiário dos últimos meses.
No Egito, por exemplo, a imagem da praça Tahrir tomada por manifestantes organizados pela internet tornou-se símbolo da queda do ex-presidente Hosni Mubarak. No Brasil, em proporção ainda reduzida, o poder de mobilização das redes sociais também já aparece.
Por fora dos partidos e das organizações tradicionais da juventude, organizaram-se protestos como as marchas da Maconha e da Liberdade, assim como o Churrascão da Gente Diferenciada, contra moradores de Higienópolis, na capital paulista, que fizeram oposição à construção de uma estação de metrô.
Para o professor de filosofia da USP Vladimir Safatle, são eventos que apontam para um momento de transição.
"A forma partidária chegou a um esgotamento e as demandas vão se expressar de uma nova forma. Há, no entanto, uma questão em aberto, que diz respeito a como a sociedade vai se organizar a partir daí", diz.
Marco Magri, um dos coordenadores da Marcha da Maconha e ativista de outros movimentos organizados pela rede, reconhece a "falência" do que chama de "política institucional". "O descontentamento com esse modelo se reflete no tamanho das mobilizações que anônimos conseguem promover."
"Essa política tradicional está fadada a perder espaço. E a nós caberá o desafio de levar aqueles que se mobilizam na internet às ruas, que é o que provoca algum resultado", avalia.
(DANIELA LIMA)

Comentário: por que a internet vai aumentar a ação política? Basicamente porque ela reduz o custo da ação coletiva. É mais barato (em termos de tempo) participar via internet. Agora, ela é efetiva? Eu acredito que, na medida em que a internet se consolidar como principal meio de comunicação e informação, o mundo virtual vai se equivaler ao mundo real em termos de importância política e isso vai exigir uma adaptação brutal das atuais instituições representativas.

30 maio 2011

Pobre PSDB! (texto extraído da Folha de hoje)

FERNANDO DE BARROS E SILVA

Festinha do PSDB

SÃO PAULO - Vista de perto, a crise dos tucanos é ainda mais constrangedora. Estive anteontem na convenção do partido. As palavras de ordem mais ouvidas na entrada do evento eram "Brasil, urgente, Marconi presidente!". Repetida entre apitaços pela militância amarelinha de Goiás, a gritaria contratada não deixava de ser um retrato do ponto a que chegou o PSDB.
Horas antes da convenção, já na madrugada de sábado, Serra, de São Paulo, ameaçava não ir a Brasília. Havia convencido Alckmin e FHC a acompanhá-lo no boicote. Do outro lado, Sérgio Guerra e Aécio Neves insistiam em dar a presidência do ITV (Instituto Teotônio Vilela) a Tasso Jereissati.
Assim foi feito. Mas não sem uma nova discussão a portas fechadas entre os caciques, da qual Serra saiu direto para a convenção na condição de presidente do conselho político que o partido inventou para acomodá-lo. Não se pode dizer que o grupo de Aécio ganhou a disputa interna de lavada porque o tal conselho recebeu atribuições maiores (na definição de alianças e candidaturas, por exemplo) do que havia sido previsto inicialmente.
O que chama atenção nisso tudo é o caráter cada vez mais paroquial da fogueira das vaidades entre os tucanos. No meio da crise envolvendo Palocci, na semana em que o governo escancarou a debilidade da sua articulação política, o PSDB esteve se engalfinhando para... saber quem vai controlar o ITV. "Brasil, urgente, Marconi presidente!".
Como se fosse possível animar o encontro, havia no salão um grupo de batucada com meia dúzia de meninotas sambando descalças. Eram as representantes do "povão".
No final, depois do teatro dos discursos que exaltaram a "unidade do partido", Aécio pegou o microfone e puxou um "Parabéns a Você" em homenagem a FHC, que fará 80 anos em junho. Todos cantaram meio sem jeito. Fiquei com a sensação de que, se houvesse um bolo ali, a tucanada iria disputar no tapa para ver quem apagava as velinhas.

24 maio 2011

Ótimo texto (mais um!) de Paulo Kramer!

Palocci salvo pelas manchetes"

Já tendo se apresentado e até se tornado íntima de magnatas como Jorge Gerdau e Abílio Diniz, entre outros, Dilma agora depende de Palocci bem menos do que dependia há um ano. Agora, é ele quem está pendurado na indulgência dela"
Na última semana, duas fontes credibilíssimas - uma, cardeal da base parlamentar governista; a outra, consultor político respeitado pelo mercado financeiro - me asseguraram que o destino de Palocci, a curto prazo, dependeria do que as capas das revistas dominicais publicariam ou, principalmente, do que elas omitiriam.

Se meus confidentes estiverem certos, então a cabeça do ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Antonio Palocci, continuará sobre o pescoço (pelo menos, até que uma aparente compulsão destrutiva volte a colocá-lo em maus lençóis.) Como ensinava o falecido embaixador Azeredo da Silveira, chanceler do governo Geisel, tem gente que atravessa a rua só pelo estranho prazer de escorregar numa casca de banana jogada na calçada em frente.

Vale conferir as manchetes deste domingo:

- Veja: atraso nas obras dos estádios para a Copa do Mundo de 2014;
- IstoÉ: a 'privatização' da Polícia Federal;
- Época: o mito da felicidade, e
- IstoÉ/Dinheiro: o escândalo camareiragate do ex-diretor-gerente do FMI Dominique Strauss-Kahn.

Como eu já previa, somente a Carta Capital, contente com seu papel de Izvestia (órgão oficioso da tirania soviética, quando o órgão oficial do PCUS era o Pravda) do partido-governo petista, manchetou: "QUEM, EU? Ele mesmo, Antonio Palocci, pego em flagrante".

Minha leitura: este é mais um escândalo alimentado pelo fogo amigo do PT. E, nas entrelinhas: a maioria dos segmentos da elite política e empresarial do país ainda está disposta a evitar a queda do ministro.

Por ora, Palocci está salvo; maquiavelicamente falando, porém, não é mais capaz de reverter uma sutil e profunda inversão de papéis nas suas relações com a presidente da República.

Um pequeno exercício pró-memória. Quando, no início da campanha presidencial de 2010, a candidata Dilma Rousseff ainda era um enigma cravejado de interrogações e embrulhado num mistério, foi ele quem endossou o novo atestado ideológico da ex-guerrilheira perante os donos do dinheiro aqui e lá fora. Como já o havia feito oito anos antes ao redigir - e persuadir o candidato Luiz Inácio Lula da Silva a assinar - a famosa Carta ao Povo Brasileiro, mais conhecida como documento 'sossega-banqueiro'. Ali, o futuro presidente prometeu o que viria a cumprir fielmente, sobretudo no seu primeiro mandato: rezar pelo catecismo fernando-malanista da trindade câmbio flutuante/inflação baixa/responsabilidade fiscal, e não pelo documento produzido, em dezembro de 2001, durante megapajelança petista em Olinda e explosivo já no título: "A ruptura necessária".

De volta ao presente, já tendo se apresentado e até se tornado íntima de magnatas como Jorge Gerdau e Abílio Diniz, entre outros, Dilma agora depende de Palocci bem menos do que dependia há um ano. Agora, é ele quem está pendurado na indulgência dela.

Mas essa indulgência depende de quê?

Na minha opinião, a resposta pode ser mais bem compreendida num paralelo com outro homem público, também submetido, tempos atrás, a uma barragem de críticas e denúncias infinitamente mais pesada e que ameaçava encerrar com humilhação sua vida pública no topo do império: ninguém menos que o ex-presidente Bill Clinton. O que o salvou? Ora, foi a economia, estúpido! Na segunda metade dos anos 90, ela ia muito bem, obrigada, com o Tesouro de Tio Sam navegando na tinta azul de um hoje inimaginável superávit orçamentário, e o consumidor americano metendo o pé na jaca pelos shoppings da vida. Esse efeito bem-estar levou a opinião pública a desconsiderar a estridência da oposição republicana e relevar as estripulias sexuais e as travessuras financeiras do primeiro presidente baby boomer da história dos Estados Unidos. Arroubos juvenis...

No Brasil de agora, a economia refratada pelo prisma da exuberância consumista e vitaminada pelos quase 100 milhões de compradores da nova classe média baixa, ainda vai bem, também. Contudo, os sábios das consultorias e as donas de casa nos supermercados começam a se angustiar diante dos primeiros e insistentes sinais da volta da infação, sem que os sortilégios macroprudenciais do ministro da Fazenda, Guido Mantega, surtam os efeitos desejados.

Palocci, por sua vez, continua a ser encarado, tanto pelos "grandes" quanto pelo "povinho" (a dicotomia é de Maquiavel), como o fiador da estabilidade e seu último recurso, quando vierem a se esgotar os truques da cartola 'desenvolvimentista' de autoridades que se julgam mais espertas que o mercado, como o próprio Mantega e o pouco discreto candidato ao cargo deste, Luciano Coutinho, presidente do BNDES. (A lista poderia ser engordada, se tal fosse politicamente possível, com o nome de outro apóstolo do dirigismo econômico, o biperdedor José Serra.)

Uma coisa é certa: Palocci emergirá dessa tempestade um homem, se não politicamente mais forte, muito mais experiente. Não é por mero acaso que os vocábulos perigo e experiência têm a mesma raiz.

Paulo Kramer é cientista político, com doutorado pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e professor licenciado do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB). Mantém conta no Twitter em homenagem aos pensadores liberais Alexis de Tocqueville e Max Weber.

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