30 maio 2011

Pobre PSDB! (texto extraído da Folha de hoje)

FERNANDO DE BARROS E SILVA

Festinha do PSDB

SÃO PAULO - Vista de perto, a crise dos tucanos é ainda mais constrangedora. Estive anteontem na convenção do partido. As palavras de ordem mais ouvidas na entrada do evento eram "Brasil, urgente, Marconi presidente!". Repetida entre apitaços pela militância amarelinha de Goiás, a gritaria contratada não deixava de ser um retrato do ponto a que chegou o PSDB.
Horas antes da convenção, já na madrugada de sábado, Serra, de São Paulo, ameaçava não ir a Brasília. Havia convencido Alckmin e FHC a acompanhá-lo no boicote. Do outro lado, Sérgio Guerra e Aécio Neves insistiam em dar a presidência do ITV (Instituto Teotônio Vilela) a Tasso Jereissati.
Assim foi feito. Mas não sem uma nova discussão a portas fechadas entre os caciques, da qual Serra saiu direto para a convenção na condição de presidente do conselho político que o partido inventou para acomodá-lo. Não se pode dizer que o grupo de Aécio ganhou a disputa interna de lavada porque o tal conselho recebeu atribuições maiores (na definição de alianças e candidaturas, por exemplo) do que havia sido previsto inicialmente.
O que chama atenção nisso tudo é o caráter cada vez mais paroquial da fogueira das vaidades entre os tucanos. No meio da crise envolvendo Palocci, na semana em que o governo escancarou a debilidade da sua articulação política, o PSDB esteve se engalfinhando para... saber quem vai controlar o ITV. "Brasil, urgente, Marconi presidente!".
Como se fosse possível animar o encontro, havia no salão um grupo de batucada com meia dúzia de meninotas sambando descalças. Eram as representantes do "povão".
No final, depois do teatro dos discursos que exaltaram a "unidade do partido", Aécio pegou o microfone e puxou um "Parabéns a Você" em homenagem a FHC, que fará 80 anos em junho. Todos cantaram meio sem jeito. Fiquei com a sensação de que, se houvesse um bolo ali, a tucanada iria disputar no tapa para ver quem apagava as velinhas.

24 maio 2011

Ótimo texto (mais um!) de Paulo Kramer!

Palocci salvo pelas manchetes"

Já tendo se apresentado e até se tornado íntima de magnatas como Jorge Gerdau e Abílio Diniz, entre outros, Dilma agora depende de Palocci bem menos do que dependia há um ano. Agora, é ele quem está pendurado na indulgência dela"
Na última semana, duas fontes credibilíssimas - uma, cardeal da base parlamentar governista; a outra, consultor político respeitado pelo mercado financeiro - me asseguraram que o destino de Palocci, a curto prazo, dependeria do que as capas das revistas dominicais publicariam ou, principalmente, do que elas omitiriam.

Se meus confidentes estiverem certos, então a cabeça do ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Antonio Palocci, continuará sobre o pescoço (pelo menos, até que uma aparente compulsão destrutiva volte a colocá-lo em maus lençóis.) Como ensinava o falecido embaixador Azeredo da Silveira, chanceler do governo Geisel, tem gente que atravessa a rua só pelo estranho prazer de escorregar numa casca de banana jogada na calçada em frente.

Vale conferir as manchetes deste domingo:

- Veja: atraso nas obras dos estádios para a Copa do Mundo de 2014;
- IstoÉ: a 'privatização' da Polícia Federal;
- Época: o mito da felicidade, e
- IstoÉ/Dinheiro: o escândalo camareiragate do ex-diretor-gerente do FMI Dominique Strauss-Kahn.

Como eu já previa, somente a Carta Capital, contente com seu papel de Izvestia (órgão oficioso da tirania soviética, quando o órgão oficial do PCUS era o Pravda) do partido-governo petista, manchetou: "QUEM, EU? Ele mesmo, Antonio Palocci, pego em flagrante".

Minha leitura: este é mais um escândalo alimentado pelo fogo amigo do PT. E, nas entrelinhas: a maioria dos segmentos da elite política e empresarial do país ainda está disposta a evitar a queda do ministro.

Por ora, Palocci está salvo; maquiavelicamente falando, porém, não é mais capaz de reverter uma sutil e profunda inversão de papéis nas suas relações com a presidente da República.

Um pequeno exercício pró-memória. Quando, no início da campanha presidencial de 2010, a candidata Dilma Rousseff ainda era um enigma cravejado de interrogações e embrulhado num mistério, foi ele quem endossou o novo atestado ideológico da ex-guerrilheira perante os donos do dinheiro aqui e lá fora. Como já o havia feito oito anos antes ao redigir - e persuadir o candidato Luiz Inácio Lula da Silva a assinar - a famosa Carta ao Povo Brasileiro, mais conhecida como documento 'sossega-banqueiro'. Ali, o futuro presidente prometeu o que viria a cumprir fielmente, sobretudo no seu primeiro mandato: rezar pelo catecismo fernando-malanista da trindade câmbio flutuante/inflação baixa/responsabilidade fiscal, e não pelo documento produzido, em dezembro de 2001, durante megapajelança petista em Olinda e explosivo já no título: "A ruptura necessária".

De volta ao presente, já tendo se apresentado e até se tornado íntima de magnatas como Jorge Gerdau e Abílio Diniz, entre outros, Dilma agora depende de Palocci bem menos do que dependia há um ano. Agora, é ele quem está pendurado na indulgência dela.

Mas essa indulgência depende de quê?

Na minha opinião, a resposta pode ser mais bem compreendida num paralelo com outro homem público, também submetido, tempos atrás, a uma barragem de críticas e denúncias infinitamente mais pesada e que ameaçava encerrar com humilhação sua vida pública no topo do império: ninguém menos que o ex-presidente Bill Clinton. O que o salvou? Ora, foi a economia, estúpido! Na segunda metade dos anos 90, ela ia muito bem, obrigada, com o Tesouro de Tio Sam navegando na tinta azul de um hoje inimaginável superávit orçamentário, e o consumidor americano metendo o pé na jaca pelos shoppings da vida. Esse efeito bem-estar levou a opinião pública a desconsiderar a estridência da oposição republicana e relevar as estripulias sexuais e as travessuras financeiras do primeiro presidente baby boomer da história dos Estados Unidos. Arroubos juvenis...

No Brasil de agora, a economia refratada pelo prisma da exuberância consumista e vitaminada pelos quase 100 milhões de compradores da nova classe média baixa, ainda vai bem, também. Contudo, os sábios das consultorias e as donas de casa nos supermercados começam a se angustiar diante dos primeiros e insistentes sinais da volta da infação, sem que os sortilégios macroprudenciais do ministro da Fazenda, Guido Mantega, surtam os efeitos desejados.

Palocci, por sua vez, continua a ser encarado, tanto pelos "grandes" quanto pelo "povinho" (a dicotomia é de Maquiavel), como o fiador da estabilidade e seu último recurso, quando vierem a se esgotar os truques da cartola 'desenvolvimentista' de autoridades que se julgam mais espertas que o mercado, como o próprio Mantega e o pouco discreto candidato ao cargo deste, Luciano Coutinho, presidente do BNDES. (A lista poderia ser engordada, se tal fosse politicamente possível, com o nome de outro apóstolo do dirigismo econômico, o biperdedor José Serra.)

Uma coisa é certa: Palocci emergirá dessa tempestade um homem, se não politicamente mais forte, muito mais experiente. Não é por mero acaso que os vocábulos perigo e experiência têm a mesma raiz.

Paulo Kramer é cientista político, com doutorado pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e professor licenciado do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB). Mantém conta no Twitter em homenagem aos pensadores liberais Alexis de Tocqueville e Max Weber.

Outros textos do colunista Paulo Kramer*

17 maio 2011

De quem é a culpa da crise? por Paul Krugman para o NYT!

Elites americanas tentam transferir responsabilidade da crise à população

Os últimos três anos foram um desastre para a maioria das economias ocidentais. Os Estados Unidos têm um desemprego em massa de longo prazo pela primeira vez desde os anos 30. Enquanto isso, a moeda única da Europa está se desfazendo. Como tudo deu tão errado?

Bem, eu estou ouvindo com crescente frequência de membros da elite autora de políticas – sábios autonomeados, autoridades e acadêmicos em boa posição – a alegação de que a culpa é do público. A ideia é de que entramos nessa confusão porque os eleitores queriam algo em troco de nada, e políticos de mentalidade fraca atenderam à tolice do eleitorado.

Então me parece um bom momento para apontar que esta visão de atribuir a culpa à população não apenas atende a interesses próprios como é completamente errada.

O fato é que o que nós estamos experimentando no momento é um desastre de cima para baixo. As políticas que nos botaram nessa confusão não foram respostas a uma exigência popular. Elas foram, com poucas exceções, políticas defendidas por pequenos grupos de pessoas influentes – em muitos casos, as mesmas pessoas que agora estão nos dando lição sobre a necessidade de sermos sérios. E ao tentarem transferir a culpa para a população em geral, as elites estão se esquivando de uma reflexão muito necessária sobre seus próprios erros catastróficos.

Permita-me que me concentre principalmente no que aconteceu nos Estados Unidos e depois dizer algumas poucas palavras sobre a Europa.

Atualmente é pregado constantemente aos americanos a necessidade de redução do déficit orçamentário. Esse foco em si representa prioridades distorcidas, já que nossa preocupação imediata deveria ser a criação de empregos. Mas suponha que nos limitássemos a falar sobre o déficit e perguntássemos: o que aconteceu com o superávit orçamentário que o governo federal tinha em 2000?

A resposta envolve três coisas principais. Primeiro, ocorreram as reduções de impostos de Bush, que adicionaram aproximadamente US$ 2 trilhões à dívida nacional ao longo da última década. Segundo, ocorreram as guerras no Iraque e no Afeganistão, que adicionaram aproximadamente US$ 1,1 trilhão. E terceiro ocorreu a grande recessão, que levou tanto a um colapso na receita quanto a um forte aumento de gastos em seguro-desemprego e outros programas sociais.

E quem foi responsável por esses arrebentadores de orçamento? Não foram as pessoas nas ruas. O presidente George W. Bush reduziu os impostos a serviço da ideologia de seu partido, não em resposta a um clamor popular – e grande parte das reduções foi destinada a uma minoria rica.

De modo semelhante, Bush decidiu invadir o Iraque porque era algo que ele e seus assessores queriam fazer, não porque os americanos estavam clamando por uma guerra contra um regime que não teve nada a ver com o 11 de Setembro. De fato, foi necessária uma campanha de venda altamente enganadora para fazer com que os americanos apoiassem a invasão, e mesmo assim, os eleitores nunca apoiaram solidamente a guerra quanto a elite política e acadêmica americana.

Finalmente, a grande recessão foi causada por um setor financeiro descontrolado, suportado por uma desregulamentação imprudente. E quem foi responsável pela desregulamentação? Pessoas poderosas em Washington, com laços estreitos com o setor financeiro. Permita-me dar um crédito em particular para Alan Greenspan, que exerceu um papel crucial tanto na desregulamentação financeira quanto na aprovação das reduções de impostos de Bush – e que agora, é claro, está entre aqueles que estão nos intimidando a respeito do déficit.

Então foi o juízo ruim da elite, não a ganância do homem comum, que causou o déficit americano. E muito disso também vale para a crise europeia.

Não é preciso dizer, não é isso o que você ouve dos autores de políticas europeus. A história oficial na Europa atualmente é que os governos de países problemáticos cederam demais às massas, prometendo muito aos eleitores ao mesmo tempo em que coletavam muito pouco em impostos. E esta é, para ser justo, a história razoavelmente precisa da Grécia. Mas não é o que aconteceu na Irlanda e na Espanha, países que tinham baixa dívida e superávits orçamentários às vésperas da crise.

A verdadeira história da crise da Europa é que os líderes criaram uma moeda única, o euro, sem criar as instituições que eram necessárias para lidar com os booms e colapsos dentro da zona do euro. E o impulso para a moeda única foi o projeto de cima para baixo supremo, uma visão da elite imposta sobre eleitores altamente relutantes.

E isso importa? Por que deveríamos nos preocupar com o esforço de transferir a culpa por políticas ruins para o público em geral?

Uma resposta é a simples responsabilidade. As pessoas que defenderam as políticas que arrebentaram o orçamento durante os anos Bush não deveriam ser autorizadas a se passarem por fiscais do déficit; pessoas que elogiaram a Irlanda como um exemplo não deveriam dar aulas sobre governança responsável.

Mas a resposta maior, eu diria, é que ao inventarem histórias sobre nosso apuro atual para absolver as pessoas que nos colocaram nele, nós perdemos qualquer chance de aprender algo com a crise. Nós precisamos atribuir a culpa a quem ela pertence, punir as elites autoras de políticas. Caso contrário, elas causarão danos ainda maiores no futuro.
Tradução: George El Khouri Andolfato

16 maio 2011

Bom texto de Marcos Nobre (Folha de ontem)

POLÍTICA

O condomínio peemedebista

As polarizações artificiais que travam o debate público

RESUMO
Herança da polarização criada pela ditadura militar, o PMDB fez de sua eterna permanência no poder a condição da política brasileira na era democrática. Antigo eixo de transformações sociais, o PT aderiu a essa lógica com o escândalo do mensalão, tornando-se "síndico" do condomínio peemedebista, essencialmente conservador.

MARCOS NOBRE

NÃO FAZ MUITO TEMPO, uma pessoa podia dizer que não tinha posição política ou preferência partidária definida. Mas sabia responder com rapidez à pergunta se era "contra" ou "a favor" do PT. Mesmo que as coisas hoje não se passem exatamente assim, isso diz muito sobre a história política recente.
Engenheiros políticos sempre desenham paraísos partidários em que o país ganha, afinal, um sistema nacional e polarizado. A mais recente tentativa foi obra da ditadura militar (1964-1985), que, de cima e na marra, pretendeu produzir um sistema bipartidário de tipo "oposição" versus "situação", MDB versus Arena, nas siglas vigentes até o final da década de 1970. Esses reformadores de gabinete e de caserna pretenderam, com isso, superar a fragmentação de interesses e as desigualdades regionais e criar algo como a verdadeira unidade de uma nação.
O resultado ruinoso é conhecido. O que é bem menos conhecido é o papel que teve esse projeto autoritário na moldagem da cultura política brasileira a partir da democratização dos anos 1980. Uma cultura que, no seu todo e em sua história, chamo de "peemedebismo". Não porque esteja restrita ao PMDB simplesmente, mas porque foi esse partido que primeiro, ainda nos anos 1980, a moldou e consolidou.

DItadura Apoiando-se na unidade contra o inimigo externo dada pela ditadura, o MDB (depois PMDB) produziu, por vocação e por necessidade, um modelo de gerenciamento de interesses adaptado à desigualdade e à fragmentação regionais. Não foi o sonhado partido uniforme e homogêneo dos reformadores ditatoriais, mas aquele que trouxe para dentro de si a diversidade e a fragmentação. Em suma, um partido nacional à brasileira.
A coisa funcionou mais ou menos assim. Todo e qualquer grupo de interesse tem entrada franqueada no partido. Se conseguir se organizar e se fortalecer como grupo organizado, ganha o direito de pleitear o seu quinhão dos fundos públicos. E, ao mesmo tempo, ganha direito de veto sobre questões que afetem diretamente seus interesses.
Com o declínio da ditadura, o pressuposto do modelo passa a ser, evidentemente, que o partido esteja permanentemente no poder, seja qual for o governo. E a consequência é a de uma política de conchavo, de gabinete, ou, quando muito, exclusivamente partidária. O debate público deve ser evitado ao máximo e, se for inevitável, deve conduzir a "clinchs" políticos, no qual prevaleçam os direitos de veto dos diferentes grupos de interesses encastelados no partido.

PT Se o domínio do peemedebismo tivesse sido completo, era assim que as coisas teriam se passado. Mas não foi isso exatamente o que se passou nas décadas de 1980 e de 1990. E só não foi assim porque, nos estertores da ditadura, surgiu o PT, um partido que não aceitava operar com base nessa lógica.
O PT pretendia ser um partido nacional. Pretendia unificar o país a partir de baixo, dos movimentos sociais e sindicais que combatiam a desigualdade em suas diversas formas. A ideia era simples e direta: a unidade própria de um país só pode ser alcançada se forem eliminadas as desigualdades. E isso inclui combater um sistema político que busca apenas acomodar e gerenciar as desigualdades, como é o caso de um sistema dominado pelo peemedebismo.
Foi assim que uma transição morna para a democracia, dirigida pelo condomínio ditatorial e pactuada de cima por um sistema político excludente, deu de cara com movimentos e organizações sociais, sindicatos e manifestações populares que não cabiam nos canais estreitos da "abertura política" de então. Como não conseguiu administrar todos esses movimentos segundo a estrita cartilha peemedebista, o sistema político encontrou uma outra maneira de neutralizá-los.
Confrontada, por exemplo, com um volume inédito de participação da sociedade organizada, a Constituinte recebeu e aceitou muitas das demandas e as inscreveu na Constituição de 1988. Mas, ao mesmo tempo, fez com que esses dispositivos constitucionais dependessem de leis complementares para serem efetivamente implementados. Ou seja, com uma ou outra exceção notável (a criação do SUS à frente), tomou de volta para si o poder de decisão de fato.

ENERGIAS REPRESADAS Porém, mais uma vez, a história não acabou aí. Com o acesso ao sistema político severamente limitado ou simplesmente bloqueado pelo peemedebismo dominante, as energias de transformação social represadas foram se acumulando e, progressivamente, passaram a se concentrar no PT.
No momento em que, com apenas 16,08% da votação, Lula conseguiu ir para o segundo turno na eleição presidencial de 1989, esse movimento de concentração de forças no PT se intensificou ainda mais. É verdade que, depois disso, ocorreu um relativo declínio da militância de base característica dos anos 1980, mas a "profissionalização" do PT da década de 1990 substituiu, de certa maneira, a militância espontânea de massa da década anterior, com a fixação, na cultura do partido, das mais destacadas demandas históricas de movimentos sociais e populares.
Nesse momento, o PT se tornou o líder inconteste e exclusivo da esquerda. E o fiel depositário das energias utópicas de transformação em larga medida barradas pela peemedebização do sistema político.
Com o declínio do PMDB, no final da década de 1980, o país flertou primeiro com o seu oposto, com o cesarismo alucinado de Fernando Collor. Se, no entanto, depois do impeachment, em 1992, voltou à lógica peemedebista dominante desde a democratização, a partir dali, o modelo inaugurado pelo PMDB já não pertencia mais somente àquele partido, mas tinha se tornado o padrão de organização e de ação de todos os partidos brasileiros.

EXCEÇÃO Todo partido brasileiro pretende, no fundo, ser um grande PMDB. (Dando um salto na história em direção ao momento atual, basta ver -para falar apenas dos exemplos mais vistosos- como se comportam exatamente segundo essa lógica partidos aparentemente tão diferentes como o PSB ou como o novo PSD). A exceção da história naquele momento foi, mais uma vez, o PT.
Olhando assim as coisas, a reorganização política do Plano Real funcionou porque e enquanto a oposição era liderada pelo PT. A acumulação de energias utópicas de transformação social fez do PT o único polo do sistema político capaz de sobreviver à margem do peemedebismo dominante.
Um importante ministro do primeiro governo FHC, Sérgio Mota, disse que a coalizão do Plano Real tinha um projeto de poder para 20 anos. Como se sabe, esse projeto não vingou, e Lula foi eleito presidente em 2002. (Aliás, o próprio Lula repetiu recentemente a frase azarada de Sérgio Mota, prevendo 20 anos de poder para o PT). Mas, no fundo, o projeto pressupunha que o PT, pela sua própria história, estaria impedido de realizar o pacto com o peemedebismo.

MENSALÃO Estava longe de ser uma suposição sem fundamento. Mesmo depois de ter chegado à presidência, em 2002, Lula não conseguiu assumi-la de fato antes que o episódio do mensalão, em 2005, tivesse afastado figuras históricas do PT, deixando-lhe o caminho livre para moldar o governo à sua maneira e feição.
Foi apenas após o mensalão que Lula realizou de fato o pacto com o peemedebismo. Mas foi também nesse momento que ficou claro que o sistema político em dois polos instaurado depois do Plano Real só poderia funcionar se um partido como o PT estivesse na oposição. Apesar de ter conseguido se colocar, durante o período FHC, como vanguarda do peemedebismo, o PSDB mostrou que sua lógica não difere, no essencial, dessa cultura política dominante.
O país queimou toda a energia de transformação que se acumulou no PT em décadas de luta social. Inicialmente, para organizar o sistema político em dois polos, deixando ao PT o papel de sustentar a oposição com base na sua sólida organização social e sindical.

NOVO CONSENSO Em um segundo momento, com a chegada do PT ao poder, para incluir no novo consenso social o princípio de que o crescimento econômico não deve deixar pessoas para trás, sem um mínimo de proteção social universal e sem um mínimo de efeitos de redistribuição de renda em favor dos mais pobres.
Essa é uma diferença considerável com relação ao consenso social anterior, chamado habitualmente por "nacional-desenvolvimentismo" e que se diz ter vigorado entre as décadas de 1930 e 1980, a maior parte do tempo sob regimes ditatoriais. Era um modelo de desenvolvimento e de sociedade que se sustentava na ideia de um crescimento econômico contínuo, com o qual se alcançava uma melhoria igualmente contínua de padrões de vida, mas, em suas versões autoritárias pelo menos, sem preocupações redistributivas.
Em vista das injustiças históricas do país, certamente não foi pouco fincar no novo consenso brasileiro cláusulas de solidariedade social e de ampliação da participação e da representação políticas. Conjugadas a uma conjuntura internacional extremamente favorável e a taxas de crescimento econômico significativas durante o período Lula, repetidas em anos consecutivos, essas novidades trouxeram também o ressurgimento no horizonte de um país com algum futuro, com a perspectiva de que a geração seguinte viverá melhor ou pelo menos tão bem quanto a anterior.
Mas esse processo já se realizou. O pacto do PT com o peemedebismo já está consolidado. E não há, de fato, oposição.

DIREITA E ESQUERDA Traduzido em termos da divisão política em posições de direita e de esquerda, o panorama resulta no seguinte. A diluição transformadora do PT marcou de tal forma o novo consenso social que as bases do discurso e da prática da direita democrática se perderam, pelo menos por ora. Como a peemedebização historicamente sempre jogou a seu favor, a direita perdeu inteiramente o pé diante de uma ocupação pela esquerda dessa cultura política. Ainda não conseguiu fincar posição para além de setores do mercado financeiro.
Do lado da luta por um aprofundamento das transformações sociais iniciadas pelo período Lula, a situação é difícil pela razão oposta: toda a energia de transformação acumulada parece já ter sido gasta. Se a ocupação pela esquerda do peemedebismo permitiu avanços, é essa mesma cultura política que tende, a partir de agora, a travar novas conquistas democráticas.
As alternativas políticas e as perguntas que se colocam hoje são bem pouco simples. E as possibilidades de ação dependem em muito de uma boa compreensão da complexidade do momento atual. Por exemplo: a atual posição de síndico do condomínio peemedebista ocupada pelo PT é suficiente para manter e aprofundar as conquistas sociais do governo Lula?
Ou, ao contrário, tende com o tempo a se diluir por completo? O que, por sua vez, pressupõe que já se tenha uma resposta à pergunta: há alternativa ao peemedebismo? Ou a política estaria limitada à sua ocupação, seja pela esquerda, seja pela direita? Ou ainda: é possível, em condições como essas, não só crescer economicamente com alguma diminuição da desigualdade, mas fazer avançar a democracia?

GUERRA POLÍTICA Por mais difícil que seja responder a essas perguntas, há pelo menos algumas constatações incontornáveis. Começando por um debate público e por um sistema político que não produzem diferenciações reais, mas tão somente uma guerra política de posições em que ninguém sai de fato do lugar.
Uma guerra em que a eventual conquista de uma trincheira significa ganhar poder de mando sobre seu pequeno território e poder de veto sobre iniciativas alheias que ameacem essa trincheira.
Essa é também a razão pela qual a presidente é vista como alguém que "toca o expediente". Por mais que o jogo seja complicado e esteja longe de estar ganho para a coalizão no poder, o governo Dilma lida agora com alternativas de gerenciamento do novo consenso brasileiro e não mais com sua transformação.
Um contexto em que se torna difícil até mesmo caracterizar o voto dado a José Serra ou a Marina Silva nas eleições presidenciais de 2010 como um voto de "oposição". Um contexto em que à "oposição" não resta senão aguardar, impotente, que um fracasso do governo lhe faça cair no colo o poder federal.
Não é à toa, portanto, que a sensação de um divórcio entre sociedade e sistema político é generalizada. O sistema político fechou-se para a invenção e para a inovação. Só um sistema político poroso à sociedade é levado a elaborar demandas de novo tipo, reivindicações e formas de representação que não constem do rol hoje determinado por ele mesmo como aceitável.

ILUSÃO GERENCIAL Alcançar uma democracia melhor do que se conseguiu construir até agora não pode ser um problema que se limite ao fracasso ou ao sucesso do governo em conseguir produzir crescimento econômico com inflação sob controle. Ao contrário da ilusão gerencial que tem o PT de ter sob sua supervisão e controle os movimentos sociais, novas energias sociais estão sendo produzidas e mobilizadas, sem que tenham o grau de organização que se está acostumado a ver, sem que estejam sendo devidamente processadas pelo sistema político.
Um potencial em larga medida invisível e que se manifesta em episódios que não cabem nos quadros gerenciais habituais, como se pode dizer de um acontecimento tão surpreendente e até hoje tão mal explicado como a revolta dos trabalhadores no canteiro da usina de Jirau, em meados de março.
Ao contrário do que acredita o condomínio peemedebista, crescimento econômico e melhoria dos padrões de vida não são garantia de que não surgirão protestos de importância fora dos enquadramentos habituais. E tentar reduzir sem mais a complexidade da situação a um posicionamento a favor ou contra um governo, a favor ou contra um partido, é optar por manter tudo como está. É aceitar a armadilha do condomínio do peemedebismo.

SÍNDICO Porque o peemedebismo é, na sua essência, conservador em todos os âmbitos. E opera com base em uma máxima que lhe garantiu a longa sobrevivência: sempre que algo dá errado, joga toda a responsabilidade da administração do condomínio nas costas do síndico. Por isso, o peemedebismo se deu mal no final da década de 1980: porque era síndico de seu próprio condomínio.
É justamente para não cair na tentação de querer ser novamente síndico que, depois do rearranjo do Plano Real, o PMDB nunca tem candidato a presidente e sempre está no poder, seja qual for o governo. O PT, como atual síndico do condomínio peemedebista, se apresenta como garantia e vanguarda de um processo que, em grande medida, não está de fato em suas mãos.
Não deixa de ser paradoxal que as polarizações pareçam tanto mais acirradas quanto menos o sistema político está de fato polarizado. A própria campanha presidencial de 2010 foi expressão de polarizações artificiais, cujo efeito foi simplesmente o de reforçar uma guerra de posições montada em trincheiras que ficam longe dos campos onde se travam hoje as batalhas decisivas.
Se o novo modelo de desenvolvimento e de sociedade hoje consolidado representa um inequívoco avanço relativamente à histórica iniquidade do país, a democracia brasileira só alcançará novos avanços a partir de agora se, de alguma maneira, começar a acertar contas com o peemedebismo. Com que forças e com que meios, só a invenção democrática poderá dizer. O que é possível dizer é que o primeiro passo para isso é destravar o debate público das polarizações artificiais e encontrar novas, reais e acirradas polarizações.

Com o acesso ao sistema político limitado pelo peemedebismo, as energias de transformação social represadas passaram a se concentrar no PT

O modelo inaugurado pelo PMDB já não pertencia mais somente àquele partido, mas tinha se tornado o padrão de organização e de ação de todos os partidos

O país queimou toda a energia de transformação do PT, deixando a este o papel de sustentar a oposição com base na sua sólida organização social e sindical

Como a peemedebização historicamente sempre jogou a seu favor, a direita perdeu o pé diante da ocupação pela esquerda dessa cultura política

A democracia brasileira só alcançará novos avanços se começar a acertar contas com o peemedebismo; para isso, é preciso achar novas polarizações