25 fevereiro 2007

Opinião: Justiça que tarda, falha. (Texto publicado no periódico JORNAL DO BRASIL - Edição de 25/02/2007)


Glaucia Dunley, psicanalista e filósofa

O bom de sermos contemporâneos - este tempo cheio de possibilidades - é que podemos ser simultaneamente gregos e modernos, e talvez escolher a melhor mistura para refletir sobre os últimos acontecimentos. E, quem sabe, finalmente deliberar que é chegada a hora de nos confrontarmos com a nossa omissão, de governados e de governantes.
Optemos por ser mais gregos agora, para sabermos recolher nesta catarse trágica que comove o país, precipitada pela morte do menino João Hélio na semana passada, os sentimentos de terror e piedade, pois eles serão nossos guias para caminhar numa direção mais justa, contrariamente ao que pensam e dizem alguns.

Terror diante do inumano desta morte, mas também diante do inumano de nossa Justiça que paira, autista, sobre nossas vidas, desde sempre, sem vir em nosso socorro. Nestes últimos dias, ao vivenciarmos esta situação-limite, ouvimos depoimentos incríveis, pareceres extremamente equivocados de membros dos Três Poderes - inclusive do próprio presidente Lula - que prescreviam com política prudência não agir no "calor" do momento (que é clamor da multidão), sob a forte emoção (que é comoção) na qual esta morte nos lançou, tal como "a gota d'água" que faz transbordar o copo cheio de injustiças e de barbáries, de crimes de abandono que lesam diariamente a vida dos brasileiros, destituindo-os de sua dignidade.

Piedade pelo menino, por sua família e amigos, por todos nós, submetidos a este regime de terror que cômoda e covardemente deixamos chegar às proporções de uma tragédia nacional.
Pois então... Ensinaram-nos os trágicos gregos do século V a.C, e sendo aqui fiel a Aristóteles, que catarse é a purificação dos sentimentos de terror e de piedade, no sentido de torná-los puros, visíveis, flagrantes para serem vistos por todos, sentidos e aprendidos (theorein) durante as tragédias (espetáculos de luto), com o objetivo de nortear as ações dos cidadãos da polis, promovendo sua interação na direção de uma existência melhor, mais justa e democrática.

Por outro lado, a operação que transformou a catarse em purgação ou eliminação dos sentimentos - parte do processo de ódio ao sensível desencadeada originalmente pelo platonismo nos primórdios da metafísica - é a responsável por esta separação entre razão e emoção, que acabou por destituir o pensamento do seu pathos, desvitalizando-o ao purgá-lo de suas intensidades, ou, em outras palavras, tornando-o massa de manobra nas mãos de alguns poucos sábios sedentos de poder e não de democracia e de justiça.

Através deste conceito aristotélico de catarse como efeito trágico, criou-se um vínculo cultural inaugural e estruturante entre sofrimento (pathos), pensamento e ação, que é parte inalienável, portanto, do saber trágico universal nas origens da democracia. É precisamente este vínculo indissolúvel que alguns de nossos governantes acreditam poder desfazer com seus comentários, patéticos que são, de outro modo, por sua arrogância, ignorância ou astúcia política.

Foi a partir deste extraordinário palco de debates sobre os limites entre o divino e o humano - as tragédias gregas do século V a.C - que os poetas trágicos nos deixaram saber, de forma sublime, que é da dor (mas também da alegria) que nasce um pensamento vivo e comprometido com uma práxis cidadã.

É preciso que a multidão de brasileiros repudie, ou não se deixe contagiar por este "pensamento togado", que esconde por baixo dos panos o desejo infame de que as coisas permaneçam como estão; encobre também a falta de potência e de vontade política de nossos dirigentes para governar, representar e legislar em prol do povo brasileiro.

Lembremos Rui Barbosa em sua paródia que subverte a imagem de uma Justiça assentada apenas em suas próprias regalias: "Justiça que tarda, falha". Esta frase-tocha nos interpela a propósito de nossa tragédia brasileira, que precisamos coletiva e urgentemente transfigurar, tornando-a palco de discussão e de participação democrática sobre o direito, a justiça, a educação, a saúde, as implicações e as responsabilidades de cada um. Os gregos o fizeram há 2.500 anos. Estamos atrasados.

Façamos com que o sacrifício de João Hélio seja realmente esta "última gota", e peçamos, humanamente, que o cálice das injustiças não seja mais afastado de nós por nossa própria omissão.

24 fevereiro 2007

Concertos para a Juventude (II) - Duverger, Maurice. - Os partidos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.


Aula 2 - Cassificação quanto à estrutura dos partidos - Maurice Duverger
1. Partidos de Quadros:
  • Estrutura dos “partidos burgueses do séc. XIX”;
  • “Comitês pouco amplos, independentes uns dos outros”;
  • Descentralizados;
  • As finanças se baseiam em donativos de sócios solidários, como bancos, comércio e indústria;
  • Não buscam cooptar grandes massas, mas agrupar personalidades;
  • “Sua atividade é inteiramente voltada para eleições e as combinações parlamentares” (caráter semi-sazonal);
  • Estrutura administrativa primário;
  • Seu poder de decisão permanece nas mãos de parlamentares que concentram grande parcela de poder individual;
  • A vida partidária se desenvolve em torno de pequenos grupos;
  • O partido só se ocupa de problemas políticos, deixando a discussão ideológica para um segundo plano.

2 - Partidos de Massa

  • Partidos socialistas e operários;
  • Comitês divididos em seções amplos, voltados para a educação política de seus membros;
  • Centralizados;
  • Sistema de filiação altamente desenvolvido, sobre o qual se apóiam as finanças dos partidos (“imposto”);
  • Enquadramento de massas populares, tão numerosas quanto possível;
  • A educação política e a difusão ideológica ocupam lugar de destaque ao lado da atividade parlamentar;
  • Estrutura administrativa altamente desenvolvida e complexa (comitês, conselhos, secretarias). Quadro extenso de funcionários permanentes;
  • O poder é divido e muitas vezes disputado entre o corpo parlamentar e as oligarquias da burocracia partidária;
  • Ao invés rivalidades pessoais, o conflito é realizado em torno de “tendências”, devido a importância das doutrinas;
  • O partido vai além das discussões políticas, adentrando no campo da economia, social e família... .

Concertos para a Juventude - Duverger, Maurice. - Os partidos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.



Aula 1 – Origem dos partidos políticos
Maurice Duverger

Antes dos partidos modernos, houve facções políticas que foram denominadas com o mesmo nome (repúblicas antigas, cidades-estado italianas, clubes de deputados das assembléias revolucionárias, etc.). A diferença entre facções e partidos separa “o inorgânico do organizado”, apesar do segundo ser uma evolução do primeiro.

Segundo o autor, partidos não podem ser definidos apenas como grupos que lutam pelo poder. As agremiações modernas possuem pouco mais de 100 anos e carregam fortemente traços de suas origens (como um adulto carrega marcas de sua infância).

“Em seu conjunto, o desenvolvimento dos partidos parece associado ao da democracia, isto é, à extensão do sufrágio popular e das prerrogativas parlamentares. Quanto mais as assembléias políticas vêem-se desenvolver suas funções e sua independência, tanto mais os seus membros se ressentem da necessidade de se agruparem por afinidades, a fim de agirem de comum acordo; quanto mais o direito de voto se estende e se multiplica, tanto mais se torna necessário enquadrar os eleitores por comitês capazes de tornar conhecidos os candidatos e de canalizar os sufrágios em sua direção. O nascimento dos partidos encontra-se ligado, portanto, ao dos grupos parlamentares e dos comitês eleitorais”.

1 - Origem Parlamentar dos Partidos:

“O mecanismo dessa gênese é simples: criação de grupos parlamentares de início; o surgimento de comitês eleitorais em seguida. Enfim, o estabelecimento de uma ligação permanente entre os dois”.

Esse mecanismo propõe que, geralmente, os partidos parlamentares são anteriores aos eleitorais. Isso se explica devido ao fato dos regimes representativos e parlamentares surgirem antes mesmo da ampliação do sufrágio.

Motivos para o agrupamento de parlamentares: comunhão de doutrinas políticas, vizinhança geográfica, “vontade de defesa profissional” (defesa de interesses) e até a corrupção (the patronage secretary). A identificação ideológica é um elemento posterior à união criada por outra natureza.

2. Origem Eleitoral dos Partidos:

O surgimento dos comitês eleitorais está diretamente ligado à extensão do sufrágio e à necessidade de “arrebanhamento” de eleitores. No caso dos partidos socialistas, o fenômeno foi acompanhado de um forte sentimento “igualitarista” e de uma vontade de suprimir as “elites sociais tradicionais”. Tende a ser uma iniciativa da esquerda, para evitar que os novos eleitores votem nos grupos já conhecidos.

3. Origem exterior dos partidos:

O partido surge a partir de uma instituição já existente, “cuja atividade encontra-se fora das eleições e do parlamento”. Ex: sindicatos, movimentos sociais, grupos guerrilheiros (Sinn Fein, na Irlanda), maçonaria, estudantes, etc.

Comparação: Partidos de origem interna
  • (-) centralizados;
  • Nascem a partir da base;
  • Comitês eleitorais pré-existentes criam um organismo central para organizar sua atividade;
  • (-) coerentes;
  • (-) disciplinados;
  • Influência preponderante do grupo parlamentar;
  • A disputa eleitoral é o objetivo central, em torno do qual o partido se organiza;
  • (+) comuns em locais onde não há um sistema partidário em funcionamento

Partido de origem externa

  • (+) centralizados;
  • Nascem a partir da cúpula;
  • Os comitês eleitorais nascem de uma cúpula pré-existente;
  • (+) coerentes;
  • (+) disciplinados;
  • Influência limitada do grupo parlamentar – vontade de submete-os à vontade de um comitê diretor independente dele;
  • A disputa eleitoral é um dos elementos de ação do partido, apesar de possuir um papel muito importante;
  • (+) mais comuns em países com sistema partidário desenvolvido.

15 fevereiro 2007

Lula e o novo Congresso Nacional


As eleições para as mesas diretoras do Congresso Nacional completaram uma das etapas mais delicadas desse recomeço do governo Lula. Temia-se que o calor da campanha pudesse criar cismas intransponíveis na base aliada ou permitir a vitória de um candidato oposicionista. Entretanto, apesar da divisão na coalizão e das traições de última hora, os resultados ficaram dentro daquilo que era esperado pelo Executivo. Renan Calheiros (PMDB-AL) foi escolhido no Senado Federal e Arlindo Chinaglia (PT-SP) ocupará a presidência da Câmara dos Deputados. Estes resultados ajudaram a dar os últimos contornos do cenário político dos próximos quatro anos.

Renan Calheiros se consolidou como um dos maiores nomes do atual governo. A eleição folgada no Senado Federal, que contou inclusive com votos da oposição, é um bom indicador da sua grande capacidade de articulação. Fato que o credencia como um dos principais interlocutores de Lula junto ao Congresso, lado a lado com José Sarney. A bancada governista no Senado é de 49 parlamentares, um apoio 58% maior do que aquele obtido pela gestão Lula em 2003.

Arlindo Chinaglia reforça a posição do PT junto ao núcleo decisório do governo. É importante lembrar que a campanha de Chinaglia começou sem o apoio do presidente da República. Pelo contrário, a sensação geral construída desde as eleições do ano passado era a de um Lula em franco processo de distanciamento do PT. Com a vitória, o partido ganha força para lutar por mais espaço e mais ministérios. Na Câmara dos Deputados, a base governista aumentou 38,6% entre 2003 e 2007. Por enquanto, 352 deputados estão filiados a partidos formalmente alinhados com Lula. Destaca-se ainda que Chinaglia pode ajudar a pavimentar a volta dos petistas de São Paulo ao Palácio do Planalto.

Ao contrário de Renan Calheiros, que detém grande confiança de seus pares, Chinaglia chega à presidência da Câmara com muitas coisas a provar. A pequena diferença entre ele e Aldo Rebelo (PCdoB-SP) pode ser explicada, em grande medida, pelo sentimento anti-petista existente entre os parlamentares. Esse aspecto foi bastante explorado por Aldo, que discursou em nome do equilíbrio, da diferença, da liberdade e do conflito. Características que, supostamente, a presidência petista tenderia a reprimir. Chinaglia rebateu o adversário ao afirmar ter perfeita consciência de que o parlamento é maior do que as paixões partidárias. Contudo, para vencer as resistências e reunificar a base, o novo presidente da Câmara depende da habilidade do governo na distribuição das pastas ministeriais entre os partidos. Isso sim poderia gerar ofensas imperdoáveis.

No que diz respeito à questão ética, a nova legislatura não é melhor do que aquela que se encerrou. Deve-se lembrar que Calheiros e Chinaglia estão entre os parlamentares que defenderam o reajuste de 91% para os congressistas. Portanto, a força que pode conduzir o saneamento do sistema político dificilmente será encontrada na virtude pessoal de deputados e senadores. Nesse caso, vale lembrar James Madison: “se os homens fossem anjos, não seria necessário governo”. O estímulo necessário ao bom comportamento está na atitude da sociedade em relação aos seus representantes, seja por meio da cobrança direta, seja por meio da opinião pública.
De maneira geral, as eleições no Congresso foram boas para o governo. Há muitas teorias e explicações para isso, que vão desde a distribuição fisiológica de cargos até a interferência velada de José Serra e Aécio Neves. Entretanto, cabe analisar a contribuição de um fator específico que chama bastante atenção, qual seja, o condicionamento da composição ministerial ao comportamento dos partidos aliados na escolha das mesas das Casas. Sua principal finalidade era testar a força e a lealdade da coalizão e minar a desconfiança do Planalto.

A decisão de atrasar as nomeações ministeriais foi bastante arriscada. Expôs o presidente Lula a críticas quanto à demora demasiada imposta para começar o novo governo e deu munição à oposição, que o acusou de estar chantageando o Congresso. Grande parte das análises voltou-se para apontar o grau de subordinação imposto pelo Executivo ao Legislativo. No entanto, sem contestar a correção dessas afirmações, o risco assumido por Lula denota também o quão grande é a dependência do Executivo de uma maioria confortável no Congresso, sem a qual há um forte comprometimento da governabilidade. Outra evidência dessa interdependência é a implementação do Conselho Político, que reúne o presidente da República e os líderes partidários. Lula decidiu dirigir-se pessoalmente aos partidos políticos, sem a utilização de intermediários. Dessa forma, a relação entre o Planalto e o Congresso Nacional tem aproximado o presidencialismo brasileiro de um parlamentarismo de fato, onde a direção do governo é determinada pelo apoio oferecido pelo Legislativo.