Glaucia Dunley, psicanalista e filósofa
O bom de sermos contemporâneos - este tempo cheio de possibilidades - é que podemos ser simultaneamente gregos e modernos, e talvez escolher a melhor mistura para refletir sobre os últimos acontecimentos. E, quem sabe, finalmente deliberar que é chegada a hora de nos confrontarmos com a nossa omissão, de governados e de governantes.
Optemos por ser mais gregos agora, para sabermos recolher nesta catarse trágica que comove o país, precipitada pela morte do menino João Hélio na semana passada, os sentimentos de terror e piedade, pois eles serão nossos guias para caminhar numa direção mais justa, contrariamente ao que pensam e dizem alguns.
Terror diante do inumano desta morte, mas também diante do inumano de nossa Justiça que paira, autista, sobre nossas vidas, desde sempre, sem vir em nosso socorro. Nestes últimos dias, ao vivenciarmos esta situação-limite, ouvimos depoimentos incríveis, pareceres extremamente equivocados de membros dos Três Poderes - inclusive do próprio presidente Lula - que prescreviam com política prudência não agir no "calor" do momento (que é clamor da multidão), sob a forte emoção (que é comoção) na qual esta morte nos lançou, tal como "a gota d'água" que faz transbordar o copo cheio de injustiças e de barbáries, de crimes de abandono que lesam diariamente a vida dos brasileiros, destituindo-os de sua dignidade.
Piedade pelo menino, por sua família e amigos, por todos nós, submetidos a este regime de terror que cômoda e covardemente deixamos chegar às proporções de uma tragédia nacional.
Pois então... Ensinaram-nos os trágicos gregos do século V a.C, e sendo aqui fiel a Aristóteles, que catarse é a purificação dos sentimentos de terror e de piedade, no sentido de torná-los puros, visíveis, flagrantes para serem vistos por todos, sentidos e aprendidos (theorein) durante as tragédias (espetáculos de luto), com o objetivo de nortear as ações dos cidadãos da polis, promovendo sua interação na direção de uma existência melhor, mais justa e democrática.
Por outro lado, a operação que transformou a catarse em purgação ou eliminação dos sentimentos - parte do processo de ódio ao sensível desencadeada originalmente pelo platonismo nos primórdios da metafísica - é a responsável por esta separação entre razão e emoção, que acabou por destituir o pensamento do seu pathos, desvitalizando-o ao purgá-lo de suas intensidades, ou, em outras palavras, tornando-o massa de manobra nas mãos de alguns poucos sábios sedentos de poder e não de democracia e de justiça.
Através deste conceito aristotélico de catarse como efeito trágico, criou-se um vínculo cultural inaugural e estruturante entre sofrimento (pathos), pensamento e ação, que é parte inalienável, portanto, do saber trágico universal nas origens da democracia. É precisamente este vínculo indissolúvel que alguns de nossos governantes acreditam poder desfazer com seus comentários, patéticos que são, de outro modo, por sua arrogância, ignorância ou astúcia política.
Foi a partir deste extraordinário palco de debates sobre os limites entre o divino e o humano - as tragédias gregas do século V a.C - que os poetas trágicos nos deixaram saber, de forma sublime, que é da dor (mas também da alegria) que nasce um pensamento vivo e comprometido com uma práxis cidadã.
É preciso que a multidão de brasileiros repudie, ou não se deixe contagiar por este "pensamento togado", que esconde por baixo dos panos o desejo infame de que as coisas permaneçam como estão; encobre também a falta de potência e de vontade política de nossos dirigentes para governar, representar e legislar em prol do povo brasileiro.
Lembremos Rui Barbosa em sua paródia que subverte a imagem de uma Justiça assentada apenas em suas próprias regalias: "Justiça que tarda, falha". Esta frase-tocha nos interpela a propósito de nossa tragédia brasileira, que precisamos coletiva e urgentemente transfigurar, tornando-a palco de discussão e de participação democrática sobre o direito, a justiça, a educação, a saúde, as implicações e as responsabilidades de cada um. Os gregos o fizeram há 2.500 anos. Estamos atrasados.
Façamos com que o sacrifício de João Hélio seja realmente esta "última gota", e peçamos, humanamente, que o cálice das injustiças não seja mais afastado de nós por nossa própria omissão.
O bom de sermos contemporâneos - este tempo cheio de possibilidades - é que podemos ser simultaneamente gregos e modernos, e talvez escolher a melhor mistura para refletir sobre os últimos acontecimentos. E, quem sabe, finalmente deliberar que é chegada a hora de nos confrontarmos com a nossa omissão, de governados e de governantes.
Optemos por ser mais gregos agora, para sabermos recolher nesta catarse trágica que comove o país, precipitada pela morte do menino João Hélio na semana passada, os sentimentos de terror e piedade, pois eles serão nossos guias para caminhar numa direção mais justa, contrariamente ao que pensam e dizem alguns.
Terror diante do inumano desta morte, mas também diante do inumano de nossa Justiça que paira, autista, sobre nossas vidas, desde sempre, sem vir em nosso socorro. Nestes últimos dias, ao vivenciarmos esta situação-limite, ouvimos depoimentos incríveis, pareceres extremamente equivocados de membros dos Três Poderes - inclusive do próprio presidente Lula - que prescreviam com política prudência não agir no "calor" do momento (que é clamor da multidão), sob a forte emoção (que é comoção) na qual esta morte nos lançou, tal como "a gota d'água" que faz transbordar o copo cheio de injustiças e de barbáries, de crimes de abandono que lesam diariamente a vida dos brasileiros, destituindo-os de sua dignidade.
Piedade pelo menino, por sua família e amigos, por todos nós, submetidos a este regime de terror que cômoda e covardemente deixamos chegar às proporções de uma tragédia nacional.
Pois então... Ensinaram-nos os trágicos gregos do século V a.C, e sendo aqui fiel a Aristóteles, que catarse é a purificação dos sentimentos de terror e de piedade, no sentido de torná-los puros, visíveis, flagrantes para serem vistos por todos, sentidos e aprendidos (theorein) durante as tragédias (espetáculos de luto), com o objetivo de nortear as ações dos cidadãos da polis, promovendo sua interação na direção de uma existência melhor, mais justa e democrática.
Por outro lado, a operação que transformou a catarse em purgação ou eliminação dos sentimentos - parte do processo de ódio ao sensível desencadeada originalmente pelo platonismo nos primórdios da metafísica - é a responsável por esta separação entre razão e emoção, que acabou por destituir o pensamento do seu pathos, desvitalizando-o ao purgá-lo de suas intensidades, ou, em outras palavras, tornando-o massa de manobra nas mãos de alguns poucos sábios sedentos de poder e não de democracia e de justiça.
Através deste conceito aristotélico de catarse como efeito trágico, criou-se um vínculo cultural inaugural e estruturante entre sofrimento (pathos), pensamento e ação, que é parte inalienável, portanto, do saber trágico universal nas origens da democracia. É precisamente este vínculo indissolúvel que alguns de nossos governantes acreditam poder desfazer com seus comentários, patéticos que são, de outro modo, por sua arrogância, ignorância ou astúcia política.
Foi a partir deste extraordinário palco de debates sobre os limites entre o divino e o humano - as tragédias gregas do século V a.C - que os poetas trágicos nos deixaram saber, de forma sublime, que é da dor (mas também da alegria) que nasce um pensamento vivo e comprometido com uma práxis cidadã.
É preciso que a multidão de brasileiros repudie, ou não se deixe contagiar por este "pensamento togado", que esconde por baixo dos panos o desejo infame de que as coisas permaneçam como estão; encobre também a falta de potência e de vontade política de nossos dirigentes para governar, representar e legislar em prol do povo brasileiro.
Lembremos Rui Barbosa em sua paródia que subverte a imagem de uma Justiça assentada apenas em suas próprias regalias: "Justiça que tarda, falha". Esta frase-tocha nos interpela a propósito de nossa tragédia brasileira, que precisamos coletiva e urgentemente transfigurar, tornando-a palco de discussão e de participação democrática sobre o direito, a justiça, a educação, a saúde, as implicações e as responsabilidades de cada um. Os gregos o fizeram há 2.500 anos. Estamos atrasados.
Façamos com que o sacrifício de João Hélio seja realmente esta "última gota", e peçamos, humanamente, que o cálice das injustiças não seja mais afastado de nós por nossa própria omissão.