Sarney e o Tempo
O tempo é a única coisa que existe. Ele transforma, ensina e julga. Não é o tempo que passa por nós, mas somos nós que passamos por ele. Há aqueles que conseguem desvendá-lo e antecipá-lo. Estes recebem o reconhecimento da história. Há outros que desejam pará-lo e até retrocedê-lo. Estes são esmagados.
O caso mais clássico do julgamento do tempo é o do ex-presidente americano Richard Nixon. Durante deu período na Casa Branca, Nixon mandou espionar o escritório do partido de oposição e foi descoberto. A repercussão do escândalo, conhecido como Water Gate, forçou Nixon a renunciar ao posto de homem mais poderoso do mundo.
Tempos depois, Nixon foi entrevistado sobre o episódio. Enquanto a nação americana esperava arrependimento do ex-presidente, recebeu exatamente o contrário. Nixon acreditava não ter feito nada de errado! Passou para a história como o autor de uma das frase mais nefasta de todos os tempos: “Quando é o presidente que faz, isso significa que não é ilegal” (When the president does it, that means it is not illegal). Sua recompensa foi o enterro definitivo da sua vida política.
O ex-presidente brasileiro José Sarney segue os mesmos passos. Os escândalos revelados recentemente no Senado Federal colocaram Sarney na defensiva. Em primeiro lugar, descobriu-se que burocratas nomeados por ele se valiam de “atos-secretos” para distribuírem privilégios entre si. Posteriormente, a imprensa foi divulgando, a conta gotas, que diversos parentes do senador estavam empregados indevidamente ou aproveitavam-se da sua influência para obter toda sorte de vantagens.
Para defender-se das denúncias, Sarney subiu à tribuna do Senado. Visivelmente nervoso, dirigiu-se aos seus pares e à nação para oferecer as explicações devidas. Quando todos esperavam algum pedido de desculpas ou o reconhecimento de um erro, de que não deveria ter acolhido tantos parentes nas estruturas de poder, o senador andou no sentido oposto: opulento, Sarney declarou que os brasileiros não tinham o direito de julgá-lo e alegou que seus préstimos passados isentam-no de responder pelos seus atos (“É uma injustiça do país julgar um homem como eu”).
Há três coisas erradas com o pronunciamento. Primeiro, os brasileiros não são tão gratos assim ao seu governo. Sarney deixou o Planalto com baixíssima popularidade, apresentando índices inferiores a 20%. Segundo, o ex-presidente deveria saber que o julgamento público é inerente à vida política. Na qualidade de ex-ocupante da presidência, Sarney deveria ser o maior exemplo da nação, exemplificar com sua vida a regra que deve ser seguida. E não a exceção a ser perdoada. Terceiro, o principal fundamento das repúblicas é a capacidade das instituições de julgarem seus poderosos da mesma forma que julgam seus cidadãos mais humildes.
O discurso de Sarney mostrou alguém confuso e incrédulo, como quem acabara de acordar de um grande sono. Os anos no poder entorpeceram-no. Sarney não viu que o Brasil desenvolveu-se e ainda recusa-se a aceitar o fim dos velhos padrões patrimonialistas. Não aprendeu com seus três antecessores que renunciaram à presidência do Senado por motivos da mesma natureza que os seus. Não mudou enquanto era tempo e agora vê-se perdido.
Sarney não é o primeiro a perder a conexão com seu tempo. Sua sensação deve ter ser equivalente à de Vargas, quando percebeu que governar em ambiente democrático era uma tarefa muito mais árdua do que havia sido no Estado Novo. Ou à de Carlos Lacerda, quando despertou para o fato de que os militares não devolveriam o governo aos civis depois de tomá-lo em 1964.
O choque do tempo pode levar ao suicídio, como aconteceu com Vargas. Ao arrependimento e ao aprendizado, como no caso de Lacerda. Ou à perplexidade e à paralisia, como demonstra Sarney.
Provavelmente, Sarney não será julgado pelo conselho de ética ou pelo plenário do Senado. Tão pouco chegará a sentar-se na cadeira dos réus do Supremo Tribunal Federal. No entanto, não escapará do tempo, que tudo julga. Os brasileiros podem não ser capazes de tocá-lo. Mas a história se encarregará de colocá-lo no seu devido lugar. Possivelmente, ao lado de Richard Nixon.
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