12 fevereiro 2009

Justificativa do ante-projeto de Reforma Política enviado pelo governo ao CN


1. Objetivos

A construção desta proposta pautou-se por duas diretrizes:

  1. que a reforma trabalhe essencialmente – embora não exclusivamente – em nível infraconstitucional, evitando debates que pareçam eleitoralmente casuístas ;
  2. que a proposta inicial almeje, independentemente dos aspectos de factibilidade de aprovação, apresentar-se como a melhor para o sistema brasileiro atual – embora não se descarte a definição de uma agenda subsidiária mínima que acompanhe a apresentação de todo o bloco de reformas.

2. Diagnóstico Atual

De maneira geral, o sistema político-eleitoral brasileiro é balizado por um presidencialismo de coalizão incrustado em um quadro partidário multifragmentado e volátil, que condiciona os governos à montagem de composições partidárias amplas, com vistas à garantia mínima de governabilidade. Tal situação pode favorecer – e efetivamente favorece – alguns aspectos contrários aos princípios de soberania popular e de democracia representativa e partidária positivados em nossa Constituição, como por exemplo:

  • Relações partidárias formuladas em bases não programáticas;
  • Concessões programáticas quase obrigatórias que desvirtuam, em alguma medida, a vontade popular;

Some-se a isso um modelo eleitoral de lista partidária (ou por coligação) aberta e não-bloqueada, em um quadro multipartidário acentuado, a ocasionar distorções como as que seguem:

  • Indução de eleitor a erro, com a “transposição” de votos nominais para a legenda ou para a coligação – o eleitor auxilia candidatos de outros partidos sem ter o devido conhecimento disso, o que resulta na eleição de representantes praticamente sem votos e, o que talvez seja mais greve, no fato de a maioria dos votos nominais do país não eleger os representantes efetivamente diplomados;
  • Conformação de coligações esporádicas e de ocasião para eleições proporcionais, em troca de benefícios mútuos não-programáticos – existência de partidos que se oferecem ou que são cooptados por outras agremiações em troca de seu tempo de propaganda eleitoral;
  • Disputa de votos entre candidatos de uma mesma legenda, exacerbando o personalismo excessivo e aumentando a importância do aspecto econômico nas campanhas pessoais – o elemento diferenciador entre as candidaturas passa a ser, indubitavelmente, o montante de recursos aplicado nas eleições, gerando campanhas excessivamente caras e desiguais;
  • Enfraquecimento dos partidos e de seu aspecto programático-ideológico, com óbvio favorecimento a candidatos de mídia ou fortemente financiados;
  • Emergência de problemas de legitimidade em momentos de vacância de cargo.

Como é perceptível, há também claro desvirtuamento das lógicas de representação majoritária e proporcional, visto que no Brasil uma quantidade muito grande de eleitores não elege seus representantes para o Parlamento. Diferentemente do que prevê o modelo de separação de poderes, pelo qual a representação plural da sociedade controlaria os atos de um Poder Executivo eleito pela maioria, o sistema de lista aberta brasileiro gera distorção na qual o Presidente da República recebe mais votos do que a soma dos votos nominais de todos os deputados federais eleitos .

Atente-se, ainda, para o padrão atual de financiamento privado de campanhas, majoritário e com poucos limites, a acarretar:

  • Desvirtuamento da representação da vontade popular – vale a “vontade do capital”;
  • Inviabilidade de candidaturas que não angariam financiadores de grande monta, independentemente do estrato ideológico representado pelo candidato ;
  • aumento do envolvimento entre candidato e financiador, com impacto direto na defesa de interesses não-republicanos e na abertura de canais propícios ao favorecimento ilegal e ao desvio de dinheiro público;
  • empenho de gastos exorbitantes em campanhas eleitorais – cada candidato é impelido a produzir campanhas individuais, não centralizadas pelo partido, para estabelecer o diferencial de sua candidatura;
  • Aponte-se, por fim, um claro desvirtuamento da representação proporcional:
    • federativa, com a imposição de limites mínimo e máximo de deputados por Estado – em que pese a existência do Senado Federal;
    • de gênero e de raça, com gritante sub-representação de mulheres e de não-brancos .

3. Avanço ou Conservadorismo: a necessidade de uma reforma política

Durante os debates que permearam a construção da proposta do governo que ora se apresenta, houve consenso entre os acadêmicos no que diz respeito à imprevisibilidade de resultados de qualquer alteração de regras partidárias e eleitorais. A experiência internacional mostra, inclusive, grande leque de efeitos inesperados e de tentativas mal-sucedidas . Há de se ter cautela, portanto, em toda e qualquer proposta de reforma política, sendo clara a necessidade de não se venderem falsas expectativas.

Há, ainda, a necessidade de considerar aspectos temporais que circundam a questão. De um lado, é fundamental prever um período de vacância para a vigência de alterações que, em última análise, terão o condão de alterar a atual correlação de forças da política brasileira – apostar que os atuais beneficiários do sistema farão opção voluntária pela troca das regras vigentes é, além de ingênuo, completamente descabido. Pensa-se, de início, na positivação de norma que preveja a validade das eventuais mudanças somente a partir das eleições de 2012.

4. Os Princípios da Reforma

Após todo o processo de construção da plataforma da reforma política, estas são, ao nosso ver, as diretrizes básicas que norteiam uma proposta ideal:

  • Combate à corrupção e às estruturas institucionais permeáveis à corrupção, com foco na transparência e no fim do abuso do poder econômico nas campanhas eleitorais, de modo a evitar a necessária vinculação de interesses entre grandes financiadores e eleitos;
  • Incremento qualitativo da representatividade em detrimento do clientelismo e do personalismo;
  • Busca pela isonomia nas campanhas eleitorais, com dispêndios financeiros menos díspares entre os candidatos;
  • Redução drástica dos custos de campanha;
  • Reforço aos partidos políticos efetivamente representativos e ao debate programático e ideológico;
  • Soberania do Congresso Nacional na definição dos rumos da Reforma.

5. Propostas Estruturais

A proposta tida como ideal gravita em torno de três eixos fundamentais:

  1. adoção da lista partidária fechada (prévia) e bloqueada (pré-ordenada);
  2. financiamento público (exclusivo) de campanhas;
  3. modelo de fidelidade partidária que parta das definições já apresentadas pelo TSE / STF. São essas as peças-chave para atingirmos os grandes objetivos traçados, respeitando os princípios acima delineados.

5.1. Lista Partidária Fechada e Bloqueada

A adoção do chamado sistema de “lista fechada” tende a atingir em cheio alguns dos alvos eleitos pelo Poder Executivo em sua análise, já que por certo contribui para o fortalecimento e para a maior institucionalização dos partidos e de seus ideários, centralizando as campanhas eleitorais e vinculando todos os candidatos de um partido a um mesmo norte comum. Estimula-se também, mesmo que mediatamente, o debate intrapartidário inerente à construção de uma plataforma material mínima. A mudança traz ainda redução brusca da carga de personalismo eleitoral e o fim da disputa entre candidatos de uma mesma legenda no pleito, com óbvio incremento do debate programático-ideológico. Há, pois, consonância com o modelo de democracia partidária constitucionalmente posto.

A questão de gênero. Ainda no que diz respeito ao modelo de lista partidária fechada e bloqueada, é ponto central e intransigente de nossa proposta a instituição e o acompanhamento de regras de proporcionalidade de gênero que, embora existentes no modelo atual, são sistematicamente descumpridas sem qualquer aplicação de sanção.

5.2. Financiamento Público Exclusivo de Campanhas

Já foram expostos os argumentos que, em nosso entendimento, minam por completo a manutenção do modelo atual, diagnosticado como protetor do elemento econômico em detrimento do sócio-político e facilitador de canais de corrupção. A proposta de financiamento público almeja, pois, diminuir de forma acentuada tais deformações.

É importante destacar, todavia, que não se quer apresentar uma fórmula mágica de combate à corrupção sistêmica ou de bloqueio a métodos ilegais de arrecadação ou de financiamento (o chamado “Caixa 2”). Embora redutível, o problema em causa está nas bases de nossa cultura política, não cabendo exclusivamente à alteração da forma de financiamento de campanhas a pretensão de solucioná-lo de maneira integral e definitiva.

A mudança almeja, em verdade, outros alvos. Para tanto, partimos do pressuposto – com lastro doutrinário e empírico, diga-se – de que o financiamento público exclusivo de campanhas, por clarear publicamente quais gastos são compatíveis com a quantidade limitada de recursos recebida por cada candidato ou partido, pode dar ensejo a instrumentos de controle mais adequados e eficazes – além de induzir o barateamento dos custos de campanha, como desenvolvido abaixo.

5.3. Fidelidade Partidária

A questão no sistema atual ganhou ares de definição pelas decisões do STF e do TSE de 2007, que indicaram pertencer o mandato ao partido. Nesse aspecto, aliás, perde consistência a discussão acerca da previsão constitucional de hipóteses taxativas de perda de mandato por parlamentar, já que se o mandado é efetivamente do partido não há que se falar nessa sanção ao parlamentar “infiel” (o mandado nunca foi efetivamente seu).

Não obstante, o Congresso pode e deve voltar a ser o grande definidor do tema, sendo fundamental para a legitimidade democrática do sistema eleitoral brasileiro a definição clara de suas regras centrais e conexas. Faz-se relevante uma positivação legal que respeite a diretriz constitucional estabelecida, qual seja, a de que o mandato pertence inequivocamente aos partidos políticos, mas que também perceba ser essencial regulamentar situações excepcionais.

Pense-se, por exemplo, na hipótese de um detentor de mandato eletivo que por motivos ideológicos queria trocar de partido para as próximas eleições – sem relação com seu mandato atual, portanto, com respeito integral à soberania popular: não é razoável crer que esse indivíduo deva estar condenado a perder um ciclo eleitoral completo simplesmente por não poder cumprir o prazo mínimo de filiação partidária legalmente exigido, e por respeitar o desejo popular que o elegeu na eleição anterior.

É nesse bojo que se faz necessário refletir acerca da possibilidade de abertura de uma janela prévia de um mês – imediatamente anterior ao prazo-limite de filiação para que se possa concorrer em uma nova eleição – para as trocas de partido daqueles que pretendem concorrer a novas eleições por outra agremiação política , com a diminuição do tempo mínimo de filiação para candidatura, de um ano para seis meses, apenas para os atuais exercentes de mandato eletivo, de modo a garantir o exercício do cargo eletivo vigente pelo maior tempo possível.

6. Ajustes Sistêmicos

6.1. Vedação de Coligações em Eleições Proporcionais

De início, faz-se mister propugnar a vedação das coligações em eleições proporcionais. É que tal possibilidade acentua, em grande medida, as distorções do sistema de lista aberta, haja vista que partidos com programas até mesmo contraditórios acabam por transferir votos entre si. Sabe-se também que, muitas vezes, as coligações são formalizadas com o intuito único de angariar tempo de propaganda eleitoral, descaracterizando o espectro ideológico dos partidos políticos.

Por tudo isso, e como alternativa à proposta de lista fechada, é imperioso, como medida de fortalecimento dos partidos políticos brasileiros, a manutenção das coligações apenas para as eleições majoritárias, bem como a mudança das regras de distribuição de tempo de propaganda eleitoral, a ser desenvolvida abaixo.

6.2. Alteração na Divisão de Tempo do Horário Eleitoral

Como as coligações para eleições do sistema majoritário estão mantidas, em tese ainda haveria espaço para a negociação do tempo eleitoral da coligação no rádio e na TV. É relevante lembrar que o tempo de TV é hoje, indubitavelmente, um dos principais recursos públicos destinado aos partidos. Considerando os princípios eleitos pela presente proposta, todavia, é essencial que se ataque esse resquício do modelo anterior, tomando cuidado para que a alteração não produza o efeito indesejado da fragmentação excessiva do quadro partidário.

A alternativa que atualmente parece mais adequada para reduzir o problema identificado é composta por dois eixos centrais:

(i) alterar de forma brusca a divisão do tempo de rádio e TV, ampliando de maneira aguda o percentual que é dividido de forma proporcional (de 2/3 para 4/5) e reduzindo fortemente o percentual mínimo a ser dividido de forma igualitária (de 1/3 para 1/5) – almeja-se permitir certa negociação entre os partidos com grande redução, no entanto, do “valor” do tempo dos pequenos partidos;
(ii) considerar, para a definição final do tempo de TV da coligação, somente o tempo proporcional destinado ao maior partido que forma a coligação;

6.3. Cláusula de Barreira ou Desempenho

A definição de uma cláusula de desempenho é coerente com os parâmetros da proposta de reforma política que se apresenta, quais sejam, o fortalecimento dos partidos políticos de respaldo ideológico e a redução drástica do chamado fisiologismo. É que a existência de um grande número de partidos políticos  sem tais características reduz o exercício de seu verdadeiro papel no jogo democrático – servir de meio para a identificação imediata entre candidatos e programas ideológico-partidários –, embaralhando, dessa forma, a assimilação de informações inerente ao processo eleitoral.

Como bem apontou o atual Presidente do STF, Ministro-Presidente Gilmar Ferreira Mendes, em seu voto na ADI 1351-3, a cláusula de desempenho pode sim ser compatível com nosso sistema constitucional, desde que pensada em proporções razoáveis e mantendo abertos os canais de participação necessários a todos os espectros da população. Assim, em que pese não serem válidas tentativas de asfixia dos partidos como a vedação do acesso aos recursos públicos nos casos de baixo desempenho, parecem-nos factíveis as vedações ao exercício de mandato parlamentar – o partido que não atingir a barreira prevista não elege representantes.

Assim, propõe-se a inclusão dos parágrafos 5° e 6° no art 17 da CF/88, vedando-se o exercício de mandato parlamentar dos deputados de partido que não obtiver ao menos um por cento dos votos válidos em eleição para a Câmara dos Deputados, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com o mínimo de meio por cento dos votos em cada. Determina-se ainda que será realizado novo cálculo dos quocientes eleitoral e partidário, desconsiderados os votos recebidos pelos partidos que não superaram a cláusula de desempenho, com novos quocientes a servirem à redistribuição dos mandatos. .

7. Outros Temas

Há ainda outros temas muito relevantes que, embora em sua grande maioria não constem das propostas originalmente defendidas pelo Poder Executivo, também devem ser objeto de consulta pública. Adiantem-se, brevemente, algumas linhas a esse respeito.

7.1. Captação ilícita de sufrágio qualificada por violência

Como primeiro ponto a ser debatido, tem-se a previsão de uma nova hipótese de captação ilícita de sufrágio qualificada por violência, ou seja, a inclusão na norma referente à captação ilícita da previsão de atos de perturbação de campanha de oponentes ou adversários.

Trata-se de alteração que visa a evitar situações como as recentemente noticiadas no Rio de Janeiro, com possibilidade real de sanção para tanto. O tema é de tamanha importância, contudo, que o governo deverá tratá-lo de forma diferenciada, enviando nos próximos dias ao Congresso projeto de lei que aborda em específico a matéria.

7.2 Regulamentação de Novo Caso de Inelegibilidade: vida pregressa do possível candidato

Está em pauta na sociedade a questão da chamada “ficha suja” dos candidatos a cargos eletivos, que em tese poderia ser considerada como causa de inelegibilidade com base no art. 14, par. 9º, da CF/88: “lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e outro prazos  de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato (...)”.

Discute-se aqui, em suma, se a idéia de vida pregressa constitucionalmente prevista difere ou não da idéia de condenação penal transitada em julgado, considerando-se o princípio constitucional da presunção de inocência e sua suposta restrição à esfera penal (e a conseqüente não aplicação ao âmbito eleitoral, por exemplo, que seria regido por princípios divergentes).

Mister atentar, contudo, para a recente decisão do STF na ADPF n. 144, julgada em agosto de 2008, com impacto evidente no debate em causa.

8. Conclusão

Sob pena de inequívoca configuração do conservadorismo em sua figura mais perniciosa, qual seja, a da omissão pelo mero receio da mudança, é mister que ao menos se discuta uma reforma política de fôlego, com possibilidades reais de aprovação, que tenda a alterar de maneira acentuada – porém responsável – o desenho institucional vigente.

Ciente dessa necessidade histórica – sempre posta aos governos constituídos, mas nunca acolhida de forma condizente à sua importância –, o Poder Executivo pretendeu fazer sua parte. As contribuições aqui apresentadas seguem agora ao Congresso Nacional para que ele, no exercício mais lídimo da representação política que lhe é atribuída e com toda a participação possível da sociedade civil, possa analisar propostas e construir entendimentos. Que a soberania da vontade popular seja, em suma, respeitada.

Créditos da foto: ©José Cruz/ABr

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